Somewhere over the rainbow....
Ninguém sabe de onde vem ou para onde vai Linda George. Tentei
saber e nada encontrei. Perguntei-lhe, e ela apenas disse que tinha nascido no
Camboja. Linda foi o nome que lhe foi dado pelos primeiros locais que conheceu.
Tornou-se o seu nome Khmer. George continua um segredo.
- Há coisas que não se contam assim... disse-me sorrindo.
Mas fui ter com ela, porque queria ouvir a sua primeira
experiência na província – não muito longe da cidade, mas com estradas e
deslocações que fazem uma grande viagem.
Calor, chuva torrencial, um carro grande que às tantas que se
tornou pequeno para tanta gente. Umas estradas longas e atribuladas percorridas
por mais de duas horas, entre uma curta passagem de ferry para o lado de lá.
Dentro do carro, entre amigos não faltava a cerveja e uns
belos cigarros locais. Lá fora a paisagem era desconcertante. Uma vila em jeito
de gueto, e quando parados no trânsito, a janela era o espelho das caras de pessoas
que vivem ali mesmo... na rua ou em casas improvisadas.
- Eram na maioria vendedores ambulantes. Mulheres e crianças,
revestidas de roupas esfarrapadas e caras tapadas, algumas apenas pela sujidade. Tinham sumos,
água e alguns petiscos, como baratas fritas, ou outro insecto qualquer. Um
pitéu! – ironiza.
- Lembro de comer arroz com feijão de soja, cozinhado dentro
de bambu. Surpreendentemente bom...
Viagem feita. Destino cumprido. A vila. Uma família inteira à
espera. Um verdadeiro clã. Instalaram-nos e, de repente, dão-nos uma carta
escrita na língua local. Linda conta que era para dar dinheiro aos monges.
- Em terra de budistas, há que dar e calar. Não me importei,
mas parece que estavam mesmo à nossa espera.
E estavam. O plano era pescar no Mekong River, um dos maiores
rios da Ásia, e que alberga quatro rios e fez um dia da capital, a cidade dos
quatro destinos.
Depois de umas belas cervejas e de uns cigarros nativos, um
barco com data de 15 anos, feito de madeira, o mais rudimentar possível
albergou seis pessoas.
O céu estava mais azul que Linda podia imaginar. As nuvens
estavam delicadamente distribuidas, para lembrar que levantar a cabeça e olhar
o céu pode provocar uma sensação vibrante. Um rio calmo, mas sem grande
peixaria, voltaram mesmo com um cesto cheio de zero peixes. Voltaram com a alma
cheia de cor e sorrisos. Um terreno plano, a perder o seu verde, para a cor do
horizonte.
- Como é belo quando céu e terra se unem! – exclamou as suas
recordações.
Cheirava a terra, ouvia-se o silêncio da natureza. O sol
estava charmoso e ameno. A brisa no ar aumentava a sensação de leveza e
dominava o seu corpo. Uma paragem na outra margem, deu para se deitar na terra,
fechar os olhos e derreter-se em terras do Camboja.
Linda lembra uma personagem que apareceu do nada, ali no meio
do campo, numa bicicleta bem estilosa a falar muito. As palavras saiam-lhe à
velocidade que o “sraso” – vinho de arroz local, ao sabor de uma aguardente –
lhe invadia as veias. Um sorriso do tamanho da terra que pisava, uma toalha
enrolada à cintura, ao estilo Khmer, deixou-se ficar a dizer adeus ao barco,
que entretanto abandonou terra vazio de peixe. Ao longe a bicicleta entra em
movimento, mas o braço e os “goodbyes” foram eternos.
- Nunca vou esquecer aquele homem, aquele sorriso, um sorriso
próprio de quem nada tem... só mesmo o sorriso e alegria de viver. Ou
simplesmente uma alegre bebedeira.
Linda conta que naquela paisagem meio bucólica, no entanto,
ao mesmo tempo, vibrante em cor e sentidos, o homem adquava-se perfeitamente. O
puzzle completou-se com a chegada daquela personagem. E assim se perpetua uma
lembrança.
De volta à vila, havia reunião na pagoda – local de oração e
onde pessoas, monges e deuses se juntam. Depois das obrigações religiosas, quem
se junta são as pessoas, num grande convívio onde não falta um prato de arroz
para toda a gente e um belo coco para matar a sede.
Música, gargalhas de quem só tem isso para dar. Partilhar
está-lhes no sangue, está-lhes na cultura de clãs e tribos, cujo líder monge
decide, cujas pessoas seguem religiosamente.
As crianças são livres, andam nuas e descalças, brincam todos
juntos, zangam-se todos juntos. Crianças são assim, em todo o lado... mas aqui
não discutem por brinquedos, ou fazem birras para comprar. Arreliam-se por
causa de um pedaço de madeira, brincam com folhas secas e soltam gritos e
risos, porque são crianças.
As mais velhas, meninas aprendem a ser mulheres e os homens
aprendem a ser homens. O limite de cada um está bem definido, a mulher toma
conta da casa e do dinheiro, o homem põe o dito dinheiro em casa e tem que ser
cuidado.
Se vão à escola não se sabe, quem são os pais talvez também
não. Crianças cujo futuro é incerto, pequenas pessoas que podem cair nas mãos das
esmolas organizadas.
A noite é cedo numa terra de calor e de trabalho de campo.
Mas antes há tempo para celebrar a bebida de arroz entre todos os visitantes.
- O filho da dona da casa, que nos albergou, era de uma
simpatia e delicadeza que nunca vi, nem mesmo num homem reconhecido como
civilizado – recorda.
A casa era de bambu, tinha duas divisões, a cozinha, que
também servia de local para lavar as partes baixas numa bacia. E a outra era
sala e quarto. Uma pequena construção, que albergou familiares, visitantes e
vizinhos, à volta de um termo cheio de sraso. Um copo de shot para cada um, a
rodar.
- Mas da maneira que o arroz está cozinhado, à terceira ronda
já se suspira – diz com o sorriso de quem lhe sentiu bem o efeito.
- In Cambodia... happy happy... dizia o
anfitrião.
Entretanto Linda George, apresenta-lhes queijo e um belo
chouriço português. Orgulha-se a contar que pôs uma provincia no reino do
Camboja a comer a bela da “salsicha portuguesa”.
- A reacção não foi das melhores, mas pelo menos provaram –
solta uma gargalhada. E à velocidade da coisa a felicidadade já transbordava. E
a hora de recolher já se tornava tarde. Mas antes, bem ao jeito de gente que
vive de música, antes de deitar o corpo no bambu, tivemos direito a música no
telemóvel de meninas locais, que queriam era dançar e nos fizeram dançar
também.
Por umas escadas improvisadas de vigas de madeira, a suite
esperava. Duas crianças já mais que a dormir fizeram companhia à noite de
Linda. Protegida por uma rede que mantem os mosquitos longe, deixou repousar o
corpo num chão duro e irregular. Entre dores nas ancas e reviravoltas sonhou
com o infinito do céu e com a imensidão de uma terra verde e virgem. Acordou
com música. Era domingo, dia de celebração e dia em que as pessoas da cidade
foram ajudar a construir mais uma parte da pagoda – para albergar os monges que
ali habitam.
- E é assim que vejo o Camboja, com música, cor e boa
disposição.
A vida é lenta, os ponteiros do relógio encravam, porque tudo
desperta bem cedo. Às cinco da manhã, já se ouve vida, já se respira agitação.
O pequeno almoço, um prato de arroz com carne, a meio da
manhã de novo a felicidade chega. Porque está na hora de dizer adeus, então há
que brindar com o vinho de arroz. Meia dúzia de shots e a viagem prossegue.
O regresso foi ainda mais caótico, mais pessoas, que espaço. Colos
vagos dão sempre para sentar mais. E lá se vai, duas horas, enlatada num carro,
um calor abrasador e uma dimensão asfixiante.
Mas tudo vale a pena quando na memória vão sorrisos, boa
gente e um céu que chega à terra.
Deste lado do mundo, posso dizer que estou a gostar de ler destes relatos.
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