Aquela que matou o gato
Linda é fã de Kusturica e um dos seus filmes preferidos é,
claro, “Gato Branco, Gato Preto”. Mas, nunca lhe tinha passado pela cabeça, que
um dia um pequeno e magro gato preto se atravessasse na sua vida, sem que ela
se desse conta.
O gato era pequenino, ainda bebé e magro, ao jeito de um gato
de ciganos – sem querer criar preconceitos – um gato ao jeito dos filmes de
Emir, por assim dizer. E era preto.
Linda George estava há três ou quatro dias no Cambodja, a
viver em casa de um família meio local, meio estrangeira. Clarifiquemos. O dito
marido era inglês, de Manchester, cerca de 50 anos e de seu nome Charlie.
Estava a viver em Phnom Pehn há cerca de dois anos e estava “casado” com uma
rapariga local, dos seus 30 e poucos anos. Como bom estrangeiro que se preze e,
sejamos sinceros, para que consiga sobreviver aqui, tem que arranjar uma moça
local, fazer-lhe um filho e sustentá-la.
Por sua vez, ela tem que tratar das finanças da casa – aqui
os maridos entregam todo o seu salário à mulher para que ela o gira – e das
suas lidas. Ele chamava-lhe a Ministra das Finanças.
- Ela é Ministra das Finanças. Aliás, aqui as mulheres todas
são.Elas é que mandam.
Talvez não, mas a isto iremos mais tarde.
Os papéis referentes ao casal, acima referidas, são decididas pela vila, de onde a mulher é oriunda. A escolha da rapariga é feita pelo monge da e depois a vila junta-se para estabelecer o
contrato. Pelo menos, assim ele conta terem-se conhecido. Para Linda a história
mais coerente, é aquela que é mais frequente. Num qualquer, uma qualquer
menina.
Independentemente dos contornos, o dinheiro, da roupa e da
comida para o marido, sem dúvida que tratava. Já as lidas da casa, deviam
aborrecê-la, que é sempre melhor tirar um sestinha depois de um bom prato de
arroz. A sujidade não incomoda. E não são sestinhas à espanhola que ela tirava,
aquilo era uma paragem de se estender por algumas horas.
Adiante. Havia também um filho. Com cerca de dois anos, o
sexto dele, o segundo dela. Do casal o único, e único na casa. De vez em quando
haviam umas crianças, familiares da mulher. E claro, a casa recebia também a
visita da matriarca, que vinha da província pôr ordem às coisas.
E o destinado gato preto e sua progenitora.
O menino chamava-se Hat, devia ter cerca de 5 anos. Tinha um
tom de pele muito escura e uns olhos grandes e redondos, bem escuros e com um
brilho doce. Linda apaixonou-se pela aquela criança, que aos poucos lhe foi
ganhando confiança e lá iam saindo uns sorrisos tímidos de menino. Vivia na
província, dormia em estacas de bambu e andava por ali.
A menina era mais velha, tinha treze. Um olhar doce, era
bonita e tinha um sorriso iluminado. Estava na casa para ajudar nas lidas, ou
fazê-las todas. De manhã logo se apressava a levar um cafezinho acabado de
fazer. Queria falar com Linda, mas não conseguia fazer-se entender, então
sorria...
A matriarca, uma mulher magra, de cabelo curto e grisalho. A
cara envelhecida pelos 60 anos de vida dura. Contudo, tinha ar de líder, e
segundo Linda comentou, era uma personalidade forte na vila.
Mãe solteira de três filhos. Um marido chinês de que nada se
sabe, décadas de luta sozinha. Não conseguiu levar os filhos à escola, mas uma
trabalha, a outra está casada com um branco e o filho toma conta dela, vive na
vila e tem a sua família, como bom homem. Seguindo os traços culturais desta
parte do mundo, tudo seguiu pelo melhor caminho.
- Parecia-me uma mulher de armas. Era educada e confiante.
Sem problemas em lidar com estrangeiros.
E finalmente, os tão fadados gatos.
Uma manhã Linda acorda, dirigindo-se à casa-de-banho, quando
se deparou com o pequeno gato preto deitado, quase camuflado pelo tapete,
também ele escuro.
- Segui o meu caminho, achei que estava a dormir. Num sítio
estranho, sem dúvida e meio inerte, mas era um gato e deixei-o em paz. Para mim
estava a fazer coisas de gato.
Horas mais tarde o homem da casa repara no gato e pega-o,
cabia-lhe na mão e estava mole, literalmente mole, parecia que não tinha ossos.
- Está doente, vai morrer – disse Charlie.
E sim, o destino daquele gato já estava traçado. Antes do seu
triste fado, foi alimentado com leite. A mãe ao seu lado, a velar o seu pequeno
e jovem enfermo.
A noite passou e a manhã seguinte teve um início fatídico e
deveras estranho. O pequeno gato preto estava morto, tinha-lhe sido decepada a
cabeça e uma perna.
Linda quando ouviu tal dizer não teve reacção.
- Pensava que não tinha ouvido bem, até que me mostrarem um
saco de plástico com os restos mortais do gato. Fucking freak, é como descrevo.
Um choque, um acontecimento estranho, mas por esta terra fora
há toda uma crença em espíritos e possessões. Assim sendo, há que rumar à vila
e falar com o monge.
- Ele sabe tudo, vai dizer quem matou o gato e o que se
passou – disse Charlie.
Até aqui tudo bem. Mais umas horas depois Charlie diz a
Linda, que suspeitam que ela matou o gato. Charlie, era um homem que delirava
com guerra e militarização – e, sem dúvida obsessivo e controlador.
- Temos que pensar em três coisas: motivo, oportunidade, e
porquê. Motivo, gatos pretos são má sorte em algumas culturas. Oportunidade porque
éramos os únicos na casa e porquê, porque as pessoas são más.
Tudo aquilo, numa consciência tranquila parece um pouco
demais. Mas, sem dúvida, que foi um episódio aberrante. Da vila não veio a
resposta de quem matou, só que a casa tinha sido construída por cimas de
cadáveres e havia uma menina que rondava a casa. Uma menina que podia ter
possuído a menina de carne e osso. Esta foi, de imediato, recambiada para a
vila.
- Temos que ver se ela tem algum problema e lá pode ser
tratada pelos mongues.
Mas, a mulher da casa dizia ter certezas que tinha sido Linda
a autora do acto fatal. Linda veio a saber mais tarde. Não gostou de saber e
sentiu-se ofendida. Charlie com as suas conversas, pediu-lhe desculpa pela
mulher.
- Pediu desculpa e tal. Mas o melhor veio, quando ele me
disse que o facto de eu ter uma bruxa tatuada, era um indicio de que eu fazia
magia negra. Só não me ri na cara dele, porque como me chama o Jackson, sou a Miss Good Manners, mas vontade não me
faltou.
- Uma terra onde a magia negra e mexer com o outro mundo é
prática comum, eu é que tinha morto o gato, por causa de uma tatuagem feita em
tempos de juventude inconsciente Nunca antes visto - e solta uma gargalhada.
O mistério do pequeno gato preto nunca foi totalmente
desvendado. Um mês mais tarde, a menina volta à casa, Linda sai, a saber que na
cabeça da mulher, ela vai ser sempre aquela que matou o gato.
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