A gente da estrada A1
Linda George
tenta agora entender como anda o país que decidiu viver. Resumidamente pode-se
dizer que anda governado por outras
nações, e dentro anda desgovernado com sede de poder, tirania e eleições.
O povo vai
sobrevivendo, não sabe explicar como, mas com sorrisos e recepções que, num
país de reis e rainhas, a fazem sentir uma princesa. Recepções vazias de
materialismo, cheias em emoção.
- A gente
Khmer tem o poder de te abraçar sem sequer tocar, de te dizer benvinda, sem
trocarem uma palavra.
Linda
descreve este povo, um povo de olhos fortes, olhos que falam num simples olhar,
geralmente seguido de um sorriso do tamanho da história deste império.
Uma história
orgulhosamente defendida pelos seus, mais antiga que o calendário de Jesus, com
uma das maiores torturas de um povo – povo que sofreu e continua a sofrer silenciosamente.
Uma história que continua a linha da sua antecessora. A intenção é sempre a
mesma, abusar um povo, para um império pessoal vingar. Triste história a deste
povo, que pode voltar às mais profundas raízes.
Linda viajou
até ao verdadeiro Cambodja. Um Cambodja de províncias, de casas de bambu, de
gente a viver aqui e ali, de gente que não tem nada. Não tem nada porque lhes
tiraram. Sem lhes pedir, levaram-lhes a terra. Com a terra a casa, o sustento e
o trabalho.
Há uma
estrada que liga Phnom Pehn a Ho Chi Min, Vietname. Uma estrada bem tratada, a
dirigir-se para o país que um dia deitou por terra o Cambodja e que hoje
continua a “invadir”. Uma estrada construída à custa de vidas, de famílias, de
bens. Uma estrada que levou a gente, da outrora terra, a um caminho onde não há
condições, não há comodidade. Uma estrada que os levou a uma ausência de
futuro, onde as crianças não vão à escola, onde não há trabalhos para os pais.
Esta gente é
chamada de “pessoas afectadas” ou os “deslocados”. Claro, um nome pomposo e
cheio de drama. Pedem-se apoios a organizações estrangeiras, eles chegam,
mas...
- Eles deram
15 milhões, usámos uma parte, o resto não sei onde foi parar?
E assim, por
arte mágica, o dinheiro que chega para ajudar a nação, desaparece e ninguém
pede ou dá justificações.
A primeira
comunidade vive numa ladeira abaixo da grandiosa estrada. Vivem numa ruela de
terra batida, sem grande espaço. Mas o espaço que as rodeia é bem grande.
- Pertence aos donos, para quem esta gente trabalha, por 3 dólares ao dia, 8 a 12 horas.
Quando Linda
ouviu estas palavras regressou, por momentos, ao modo de vida feudal, onde os
senhores tinham a terra e... escravos. Nesta comunidade há crianças, segundo a
tradução, que vão à escola. Fica a um quilómetro a pé, de bicicleta ou, para os
mais sortudos, de mota com os pais.
A rua é
lixeira, é espaço de convívio e um playground
para as crianças... sujas, sem roupa e de olhar triste.
De novo na
estrada e uma viagem de cerca de quinze minutos num ferry chega-se à outra
comunidade “afectada”.
A espera
pelo ferry é outro acontecimento. Linda viajou ao assento de uma scooter. E de
repente, à sua volta estão dezenas de motas e pessoas, que esperam pelo mesmo -
que abram os portões, para numa correria desalmada se acelere para não perder a
ida. Uma sensação claustrofóbica, mas que no fim Linda descreve como uma
largada de touros por um rua à fora e toda a gente a fugir.
- Uma
loucura! - diz.
A outra
comunidade tem duas mulheres líderes. Que há sete anos, depois do saqueamento,
tentam defender a sua gente. Duas guerreiras, uma delas muito pequenina, com um
cara sofrida, mas ainda bonita para a idade – terá cerca de 65 anos, ou mais.
Vestida de preto e branco – uma saia comprida, seguindo a moda local, e um
blusa com padrões em branco. A sua postura é de matriarca, que cuida, que
acarinha. Alguém contou a Linda que esta
mulher já tinha ao Japão e a muitos outros lados. Talvez tivesse ido em busca
de repostas que não chegam, compensações que não são pagas.
A
instituição financeira que construiu a estrada, prometeu pagar tudo ao fim de
cinco anos. Já passaram sete. O Governo lava as mãos como Pilatos.
Nesta
comunidade Linda conheceu maioritariamente mulheres e crianças. Foi-lhe dito
que os homens estavam na pesca ou na caça, para que à noite houvesse comida.
Mulheres sorridentes e afáveis.
- Mas, havia
uma senhora, com um ar determinado, de quem não cruza os braços. Os seus olhos
encovados e quase pretos pareciam dizer a Linda:
- Eu sei o
que se passa. Ninguém vai vir para nós. Resta-nos lutar para sobreviver.
Olhando à
sua volta Linda viu condições desunamas, viu casas construídas de repente,
tortas e cheias de falhas por entre as folhas de bambu.
- Se chove
nem quero imaginar o que passam.
Casas que
não protegem esta gente de nada, nem da chuva, nem do sol. Pedaços de madeira e
de troncos juntos a parecer um casa. Se o lobo sopra leva a casa e a gente.
Uma
casa-de-banho comum, sem escoamento.
- Esta
casa-de-banho serve para dois anos – disse um responsável por ajudar estas
pessoas.
Água não há.
Há que pegar nuns baldes e caminhar até ao rio, e até essa está envenenada. Mas
tem que servir para tomar banho e cozinhar.
Deixaram
esta gente à beira da estrada e de doenças. Deixaram as suas crianças à beira
do nada.
Linda
recorda duas meninas, com os seus 10 ou 12 anos.
- Tão
bonitas. O que quer dizer que às tantas o futuro delas é serem vendidas para
pagar as dívidas dos pais.
Linda George
recordou um documentário que viu sobre a venda de mulheres no Cambodja. Não era
novidade o seu pensamento, mas ouvir em voz alta e em directo é, sem dúvida, um
choque.
- Esta gente
não tem dinheiro, então endividam aos agiotas para poder construir uma casa. Se
não pagam, a dívida vai crescendo. Um cartão de crédiot sim fim à vista. Quando
não há forma de pagar, apostam-se vidas de crianças.
Aquelas
meninas, vão provavelmente, acabar nas redes de cerveja e muito karaoke. Em
bares na grande cidade, a fazerem render o corpo.
Uma vida que
lhes é imposta e nem sabem porquê.
- Lembro-me
também do meu colega me fazer reparar no braço direito de um menino. Todo
queimado, ainda com tons de carne viva.
- O que é
que lhe aconteceu?
- Queimou-se
num braço com água a ferver. Aqui não há assistência médica, foi o que poderam
fazer por ele.
Marcas
físicas de maus tratos, que ninguém lhes explica. Abandonados e desprezados.
Traumas psicológicos, que ninguém vai apagar. A espera por uma mão solidária,
que já está mais que atrasada e que não se sabe se chega.
Numa das
improvisadas casas estava um grupo de meninas à volta de um caderno, a fazerem
contas de multiplicar. Melhores que muitos meninos ajudados por modernas
calculadoras. Infelizmente, são contas
de subtrair que regra a vida.
Sete anos de
uma decadência de vida.
Ao voltar
Linda olhou o pôr do sol. Um céu que nunca antes tinha visto, amarelo intenso,
envergonhado por entre as nuvens. Havia uma luz laranja ao fundo, de repente o
céu coloriu-se de violeta. Uma paisagem incrível, que pouco consegue descrever
em palavras.
- Só visto.
Nunca vi um céu daquela cor. O céu nesta terra é qualquer coisa de mágico.
Um dia
explicaram-lhe que o céu nesta parte do globo gera cores surpreendentes. Um sol
brilhante e quente, que de repente é invadido por chuvas torrenciais, cria na
atmosfera uma pressão de temperatura e de cristais de água que se mostra em tons
de cores, que faz corar um delicado arco-íris.
Um país
tropical abençoado por Deus, amaldiçoado pelo Homem.
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